terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Um coração verde

((Uma pequena homenagem ao Mágico de Oz e à Elphaba))

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Ao entrar em seu castelo, fui tomado por um medo absurdo. Eu esperava ser recepcionado por um exército de macacos voadores ou outro animal igualmente exótico, mas a própria Bruxa veio ao meu encontro.

Eu ouvira histórias sobre ela, e imaginava que fosse o ser mais feio de todo o universo. Diziam que ela aterrorizara a tudo e todos na terra de Oz, antes de chegar a Confabula. Olhando para ela, no entanto, eu não conseguia acreditar que ela fosse capaz de uma crueldade sequer.

De frente para mim, estava uma mulher jovem, com os cabelos mais negros que eu já vira na vida e olhos igualmente negros e sem expressão, vestida de preto da cabeça aos pés, desde seu chapéu pontiagudo até suas sapatilhas rendadas. Ela parecia decepcionada com a existência, não ameaçadora. A única característica estranha que eu conseguia ver era que sua pele era... Como dizer? Verde.

Antes que eu pudesse abrir a boca para dizer algo, sua voz ressoou como um trovão pelo castelo.

- Sem pedir “por favor”. - Ela alertou, impassível. - E eu não estou usando truques mentais. Essa sou realmente eu.

Ela se sentou em seu trono, que era adornado por pedras azuis que reluziam no sol que se punha, e tirou os sapatos.

Me ajoelhei de frente para ela, e deixei minha cabeça tocar as pontas de seus pés verdes descalços.

- Fabala, Grande e Poderosa, eu desejo ser livrado da dor de ter um coração que não funciona. Quero um coração que bata.

Ela ergueu as duas mãos e as encostou em meu peito. Eram gélidas, como se ela já estivesse morta. Quando não sentiu batimentos, voltou a descansar as mãos em seu colo. Era uma visão desconfortável, uma mulher tão imponente e fria me analisando.

- Você não conhece a dor de carregar um coração cansado. - Ela me acusou, e eu pude apenas abaixar ainda mais a cabeça e olhar o chão. Eu realmente desconhecia essa dor, minha vida antes do incidente que me deixara sem coração real fora simples e sem grandes acontecimentos para meu coração.

Me preparei para contar a história do Homem de Lata que eu conhecera a caminho de casa, que fora enganado pelo Mágico de Oz e vagava desolado pela floresta de Confabula, quando ouvira meus batimentos e me acertara com seu machado, apenas para substituir seu coração de seda pelo meu, que era vivo. Um dos dedos da Bruxa me calou, me impedindo de contar minha história.

- Eu sei.

Então, algo inesperado aconteceu. Ela atravessou a mão por sua pele e retirou do fundo de seu peito o seu próprio coração. Era uma coisa velha, maltratada, amassada e repleta de remendados por toda a parte. Era verde e brilhava, apesar de ser um brilho fraco, gasto pelos anos. No momento, pintava todo o salão de vermelho e verde, em colorações vivas, enquanto a Bruxa o separava das artérias e veias que o prendiam. O branco dos olhos dela sumiu durante todo o processo.

Eu não sabia como reagir. Ao mesmo tempo, aquele era o coração mais feio que eu já vira, pois fora muito maltratado e abusado, mas era o mais lindo de todos pois era o único verde em todo o mundo e a Bruxa pretendia que ele fosse meu.

Ela o ofereceu para mim, e sua voz soou mais poderosa e mais triste.

- A partir de agora, você vai conhecer um coração real. - Ela arfou, como se perdesse o ar, e apontou para o portão do castelo. - Vá, e para longe!

Eu não ousei desafiá-la. Por mais que quisesse agradecê-la, dizer que eu cuidaria bem daquele coração e que não teria dificuldades em carregá-lo, sabia que não poderia desobedecê-la, então corri.

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Quando cheguei em meu quarto, coloquei-me de frente para o espelho, tirei a blusa (e a manchei ainda mais daquele sangue bicolor) e abri meu peito com uma de minhas facas de carne, seguindo o corte prévio do Homem de Lata.

Tirei aquele coração de seda que tanto me atormentava e encaixei meu coração novo. Era bonito olhar para meu reflexo, agora completo, e o verde contrastava com a minha pele pálida. Recosturei a pele com única linha que encontrei, que era uma de crochê.

O local ficou estufado por conta da linha, e também porque o coração da Bruxa era um pouco grande demais para mim, mas eu não me importava. Finalmente tinha um coração que batia novamente, podia sentir outra vez.


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Ele começou a pesar na segunda semana. Senti o peso da insegurança, da tristeza, do desprezo. Eu sentia que não era bom o suficiente, e todas as vezes que passava por Winkie ele começava a arder.

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O ápice da dor e do desconforto aconteceu cerca de um ano depois, quando conheci uma garçonete na fronteira de Oz. Ela era dona dos olhos mais doces que eu já encontrara, e se aproximava de mim um pouco mais com o passar dos dias.

Em uma das tardes em que eu decidira tomar um café antes de seguir viagem, ela me disse olá e eu senti o coração dentro de meu peito bater como o tambor de um Munchkin. Eu não sabia o que dizer ou o que fazer, mas tive a certeza de que ele se quebraria em mil pedaços caso continuasse ali.

Saí do café, mas o aperto continuou, então corri até meu automóvel e me tranquei ali, esperando a dor passar, mas ela não passou. A cada segundo, ela aumentava, e o coração verde parecia grande demais para mim, crescendo a cada instante, a cada suspiro, a cada respiração. Em meio a um delírio, julguei que a morte fosse um destino melhor do que aquele.

Meu coração novo era cheio de medo. Ele também se sentia sozinho e solitário com muito mais frequência do que eu gostaria, e não gostava que chegassem nele sem avisar. Ele se apaixonava fácil e, ocasionalmente, não sabia como lidar consigo mesmo.

Enquanto chorava – porque as lágrimas não eram opcionais naquela situação -, eu tive que admitir que a bruxa estava certa: eu não conhecia a dor de carregar um coração cansado. Pior ainda: eu não aguentava carregar todo aquele peso. Minhas costas já estavam curvadas para que eu conseguisse carregá-lo.

Dirigi até minha casa e me tranquei no banheiro. Refiz o corte de um ano atrás, e coloquei o coração de seda de volta. Minhas lágrimas secaram no mesmo instante, e eu respirei aliviado. Segurando o coração verde ensanguentado em minhas mãos, pensei no que faria com ele.

Procurei uma caixa de vidro antiga e o depositei ali dentro, onde ficou, exposto em minha sala de estar para quem quisesse ver como era pesado e feio um coração cansado e abusado. Quando minhas visitas o viam, me perguntavam se eu preferiria colocá-lo em mim outra vez ou continuar sem sentir, e minha resposta se mantinha a mesma: era melhor não ter coração do que carregar o fardo de um coração que viveu e amou.


Fim.


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